domingo, 6 de novembro de 2011
ORIGEM DA POESIA por Malte Laurids Brigge
Pois versos não são, como as pessoas imaginam, meros sentimentos (estes a pessoa tem bastante cedo), mas são experiências. Por causa de um só verso, devemos ver cidades, homens e coisas, devemos conhecer os animais, devemos sentir como voam os pássaros e conhecer o gesto que as pequenas flores fazem ao desabrochar pela manhã. Devemos ser capazes de pensar retrospectivamente em estradas por regiões desconhecidas, em encontros inesperados e em separações que longamente se sentiram aproximar; em dias da infância que ainda continuam inexplicados, em pais que tivemos de ferir quando nos traziam alegria e não o entendemos (foi alegria para outrem); nas doenças tidas na infância que começa tão estranhamente com tantas transformações graves e profundas, nos dias em lugares afastados e quietos e nas manhãs ao lado do mar, e no mar mesmo, nos mares, nas noites de viagem correndo pela montanha e voando junto a todas as estrelas - e ainda não basta podermos pensar em tudo isso. Devemos guardar a memória de muitas noites de amor, nenhuma delas igual à outra, das risadas das mulheres ao trabalhar, e em mulheres alegres, brancas, dormindo em leito de criança, juntando-se de novo. Mas devemos também ter estado ao lado do morimbundo, ter sentado ao lado dos mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos indecisos. E não basta ainda termos essas memórias. Devemos ser capazes de esquecê-las quando são muitas e devemos ter a grande paciência de esperar até que novamente retornem. Pois ainda não se tratará das memórias mesmas. Não até elas se tornarem sangue dentro de nós, reflexo e gesto, inomináveis, e não mais se poderem se distinguir de nós mesmos, não até acontecer que em hora muito rara a primeira palavra de um verso surja no meio delas e a partir delas continue.
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