Sentimento
de posse não deve fazer parte do amor, que é a capacidade de suportar a
distância, para nutrir a saudade e dar liberdade.
Era uma vez
uma menina que tinha como o seu melhor amigo um pássaro encantado. Ele lhe
contava histórias de outros mundos. É assim que nos encantamos com a vida e com
todos aqueles que nos propiciam tal estado. O encanto é a necessidade da alma e
o desencanto é o sofrimento. Um dia, para garantir o encanto, a menina prendeu
o pássaro em uma gaiola especial. A partir daí, veio o desencanto e ela
aprendeu que amar é a capacidade de suportar a distância, para nutrir a saudade
e dar liberdade ao outro de ir e vir.
Quando o
cimento da posse e do desejo de controlar tenta unir as partes que se amam, em
lugar do bem-estar ficam a tristeza e o sentimento de morte. Precisamos da saudade.
Essa, sim, preenche a nossa sensação de incompletude, tão necessária para
fortalecer o encanto que existe no amor. A saudade desaparece quando prendemos
o outro com nossas inseguranças e medos, de amar e ser amado, deixando-o
cinzento e triste. Com o temor de sentirmos a angústia da incompletude, construímos
prisões feitas com o nosso egoísmo e as frustrações das nossas expectativas não
atendidas. Desejamos eternizar os bons momentos de estarmos juntos esquecidos
de que só poderemos percebê-los quando também experimentamos o distanciamento.
Vivemos a
liberdade e o amor como uma antinomia. Na mitologia grega, o deus do amor tem
asas. Mas também esse mesmo deus carrega flechas que ferem. E se não queremos
nenhuma dor, nem a da suade, aí cometemos o erro de usar o amor sem o seu outro
lado - a liberdade. Quando a menina comprou a gaiola, ela esperou que ele se
acostumasse preso. Mas o tempo passou e tudo ficou triste. Ninguém se acostuma
com a prisão. Nossa alma quer habitar um corpo em que ela sinta a sua liberdade
de viver, caso contrário ela mata esse corpo para ter a sua liberdade de voar.
Quando chegamos a esse ponto de não mais enxergarmos ao colorido da vida,
arrependidos, some-se o encanto da vida e precisamos de psicoterapia.
Jung nos ensinou,
na prática, quatro fases: Confissão, Esclarecimento, Educação e a
Transformação. Para esse entendimento, ele recorreu também ao comportamento dos
alquimistas. Esses seguiam um caminho muito parecido com a busca espiritual.
Utilizavam as mais diversas substâncias, matéria bruta, para transformá-las em
um material refinado e evoluído. Esses materiais poderiam ser, por exemplo,
leite de virgem, menstruação de prostituta, urina de criança e assim pó diante.
Por analogia, Jung comparou com o processo do homem em análise: chega nesse “estado
bruto” e sofre a transformação até se tornar um ser mais elaborado. Os
alquimistas utilizaram o latim para nomear as fases por que passava a matéria:
Nigredo, Albedo e Rubedo.
Quando
chegamos ao consultório, chorando as mágoas do arrependimento ou, simplesmente,
com a grande dor da perda do outro, que parecia pertencer às nossas entranhas,
fazemos a Confissão. Estamos na Nigredo. A fase que sugere a morte, a sombra e
o sofrimento. Aqui não sabemos separar os problemas nossos e os do mundo.
Certa vez o
pássaro voltou branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão. Ele cantava
as canções e as histórias maravilhosas daquele mundo que a menina nunca
vira. Essa fase é a chamada Albedo, do
Esclarecimento e da Educação. Aprendemos sobre as nossas responsabilidades com
o que acontece em volta. Há um encantamento e tudo começa a fazer sentido.
De uma outra
vez o pássaro voltou vermelho como o fogo. E de novo começavam as histórias.
Essa é a fase da Rubedo. É a hora de vier a vida com paixão, fogo e ardor. Aqui
acontece a Transformação. Enxergamos mais longe.
Agora
sabemos que o ato contra outrem é também contra nós mesmos. Aprendemos a não
corromper a ordem – não por medo do pecado ou de ser preso, mas por sentir não
ser o correto. É a vida nova, a criança divina. O Natal.
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Carlos São Paulo
Médico e
psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia.