terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A MENINA E O PÁSSARO ENCANTADO (Amor e posse)


Sentimento de posse não deve fazer parte do amor, que é a capacidade de suportar a distância, para nutrir a saudade e dar liberdade.

Era uma vez uma menina que tinha como o seu melhor amigo um pássaro encantado. Ele lhe contava histórias de outros mundos. É assim que nos encantamos com a vida e com todos aqueles que nos propiciam tal estado. O encanto é a necessidade da alma e o desencanto é o sofrimento. Um dia, para garantir o encanto, a menina prendeu o pássaro em uma gaiola especial. A partir daí, veio o desencanto e ela aprendeu que amar é a capacidade de suportar a distância, para nutrir a saudade e dar liberdade ao outro de ir e vir.

Quando o cimento da posse e do desejo de controlar tenta unir as partes que se amam, em lugar do bem-estar ficam a tristeza e o sentimento de morte. Precisamos da saudade. Essa, sim, preenche a nossa sensação de incompletude, tão necessária para fortalecer o encanto que existe no amor. A saudade desaparece quando prendemos o outro com nossas inseguranças e medos, de amar e ser amado, deixando-o cinzento e triste. Com o temor de sentirmos a angústia da incompletude, construímos prisões feitas com o nosso egoísmo e as frustrações das nossas expectativas não atendidas. Desejamos eternizar os bons momentos de estarmos juntos esquecidos de que só poderemos percebê-los quando também experimentamos o distanciamento.

Vivemos a liberdade e o amor como uma antinomia. Na mitologia grega, o deus do amor tem asas. Mas também esse mesmo deus carrega flechas que ferem. E se não queremos nenhuma dor, nem a da suade, aí cometemos o erro de usar o amor sem o seu outro lado - a liberdade. Quando a menina comprou a gaiola, ela esperou que ele se acostumasse preso. Mas o tempo passou e tudo ficou triste. Ninguém se acostuma com a prisão. Nossa alma quer habitar um corpo em que ela sinta a sua liberdade de viver, caso contrário ela mata esse corpo para ter a sua liberdade de voar. Quando chegamos a esse ponto de não mais enxergarmos ao colorido da vida, arrependidos, some-se o encanto da vida e precisamos de psicoterapia.

Jung nos ensinou, na prática, quatro fases: Confissão, Esclarecimento, Educação e a Transformação. Para esse entendimento, ele recorreu também ao comportamento dos alquimistas. Esses seguiam um caminho muito parecido com a busca espiritual. Utilizavam as mais diversas substâncias, matéria bruta, para transformá-las em um material refinado e evoluído. Esses materiais poderiam ser, por exemplo, leite de virgem, menstruação de prostituta, urina de criança e assim pó diante. Por analogia, Jung comparou com o processo do homem em análise: chega nesse “estado bruto” e sofre a transformação até se tornar um ser mais elaborado. Os alquimistas utilizaram o latim para nomear as fases por que passava a matéria: Nigredo, Albedo e Rubedo.

Quando chegamos ao consultório, chorando as mágoas do arrependimento ou, simplesmente, com a grande dor da perda do outro, que parecia pertencer às nossas entranhas, fazemos a Confissão. Estamos na Nigredo. A fase que sugere a morte, a sombra e o sofrimento. Aqui não sabemos separar os problemas nossos e os do mundo.

Certa vez o pássaro voltou branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão. Ele cantava as canções e as histórias maravilhosas daquele mundo que a menina nunca vira.  Essa fase é a chamada Albedo, do Esclarecimento e da Educação. Aprendemos sobre as nossas responsabilidades com o que acontece em volta. Há um encantamento e tudo começa a fazer sentido.

De uma outra vez o pássaro voltou vermelho como o fogo. E de novo começavam as histórias. Essa é a fase da Rubedo. É a hora de vier a vida com paixão, fogo e ardor. Aqui acontece a Transformação. Enxergamos mais longe.

Agora sabemos que o ato contra outrem é também contra nós mesmos. Aprendemos a não corromper a ordem – não por medo do pecado ou de ser preso, mas por sentir não ser o correto. É a vida nova, a criança divina. O Natal.

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Carlos São Paulo
Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia.

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