quarta-feira, 14 de março de 2012

(O HOMEM E O SI-MESMO) 7º SERMÃO AOS MORTOS

Mas quando sobreveio a noite, os mortos avançaram de novo, com lamentável aspecto, e disseram: Tem mais uma coisa que esquecemos de mencionar. Ensina-nos sobre o homem.

O homem é pórtico, pelo qual, vindos do mundo exterior de deuses, demônios e almas, passais para o mundo interior; saindo do mais vasto para penetrar no mais ínfimo. Pequeno e efêmero é o homem. Já se encontra atrás de vós e mais uma vez vos achais no espaço sem fim, no menor ou mais íntimo infinito. A incalculável distância paira uma estrela solitária no zênite.

Esse é o único deus desse homem. Esse o seu mundo, seu pleroma, sua divindade.

Nesse mundo é homem Abraxas, o criador e destruidor de seu próprio mundo.

Essa estrela é o deus e o destino do homem.

Esse o único deus que o guia. Nele vai o homem repousar. Rumo a ele segue a longa jornada da alma depois da morte. Nele brilha como luz tudo o que o homem traz de volta do mundo mais vasto. A esse único deus o homem erguerá suas preces.

A prece intensifica a luz da estrela. Lança uma ponte sobre a morte. Prepara a vida para o mundo mais ínfimo e aplaca os desejos irrealizáveis do mais vasto.

Quando o mais vasto esfria, a Estrela arde.

Entre o homem e o seu deus único nada se interpõe, desde que se possa desviar os olhos do espetáculo flamejante de Abraxas.

O homem aqui, deus lá.

A fraqueza e o nada aqui, lá o poder eternamente criador.

Aqui, nada além de trevas e gélida umidade.

Lá completamente sol.

Então os mortos se calaram e subiram como fumaça de fogueira de pastor que passou a noite zelando pelo rebanho.

ANAGRAMA:
NAHTRIHECCUNDE
GAHINNEVERAHTUNIN
ZEHGESSURKLACH
ZUNNUS

(SERPENTE E PÁSSARO BRANCO) 6º SERMÃO AOS MORTOS

O demônio da sexualidade se aproxima de nossa alma feito serpente. Semi-humano, surge como pensamento-desejo.

O da espiritualidade mergulha sobre nossa alma como pássaro branco. Semi-humano, surge como desejo-pensamento.

A serpente é uma alma terrena, semidemoníaca, um espírito, e semelhante ao espírito dos mortos. Assim, como estes, também pulula entre as coisas da Terra, fazendo-nos temê-las ou espicaçando-nos com desejos imoderados. A serpente tem natureza semelhante à da mulher. Sempre procura a companhia dos mortos retidos pelo feitiço da Terra, os que não encontraram o caminho mais além, que leva ao isolamento. A serpente é meretriz. Entrega-se a orgias com o Diabo e com os maus espíritos; tirania e algos maldosa, sempre seduz os mais vis. O pássaro branco é uma alma semiceleste do homem. Dialoga com a Mãe, descendo de quando em quando. O pássaro tem natureza semelhante à do homem, e é pensamento efetivo. Casto e solitário, é mensageiro da Mãe. Sobrevoa a Terra a grande altitude. Infunde isolamento. Dá ciência dos distantes que já se foram e estão consumados. Leva nossa palavra à Mãe nas alturas. Ela intercede, avisa, mas não dispõe de poder contra os deuses. É receptáculo do Sol. A serpente vai para baixo e, com sua astúcia, estropia o demônio fálico ou então incita-o a prosseguir. Produz os pensamentos demasiado ardilosos do demônio terrestre, aqueles pensamentos que se insinuam com desejo por cada furo e fenda em todas as coisas. A serpente, sem dúvida, não quer, mas tem que ser útil a nós. Foge do nosso alcance, mostrando-nos assim o caminho, que com nossa inteligência humana não poderíamos encontrar.

Com olhar desdenhoso, disseram os mortos. Pára de falar em deuses, demônios e almas. No fundo, há muito já sabíamos disso.

(ESPIRITUALIDADE E SEXUALIDADE) 5º SERMÃO AOS MORTOS

Os mortos escarneceram e vociferaram: Ensina-nos, tolo, a respeito da igreja e da santa comunhão.

O mundo dos deuses se torna manifesto na espiritualidade e na sexualidade. Os celestes aparecem na espiritualidade, os terrestres na sexualidade.
A espiritualidade concebe e acalenta. É feminina e por isso a chamamos de MATER COELESTIS, a mãe celeste. A sexualidade gera e cria. Masculina, a chamamos de PHALLOS, o pai terrestre.
A sexualidade do homem é mais da terra; a da mulher, mais espiritual.
A epiritualidade do homem é mais do céu, vai para o mais vasto.
A da mulher, mais da terra, vai para o mais ínfimo.
Mendaz e diabólica é a espiritualidade do homem que vai para o mais ínfimo.
Mendaz e diabólica é a espiritualidade da mulher que vai para o mais vasto.
Cada uma deve ir para seu próprio lugar.
O homem e a mulher, quando não dividem seus caminhos espirituais, tornam-se diabos um para o outro, pois a natureza da criatura é a individualidade.
A sexualidade do homem tem curso terreno; a da mulher, espiritual. O homem e a mulher, quando não dstinguem sua sexualidade, tornam-se diabos um para o outro.
O homem conhecerá o menor, a mulher o maior.
O homem se distinguirá da espiritualidade e da sexualidade. Chamará à espiritualidade Mãe, colocando-o entre si mesmo e a terra. Pois Mãe e Phallos são demônios super-humanos que revelam o mundo dos deuses. São para nós mais efetivos que os deuses, por terem maior afinidade com a nossa própria natureza. Se não vos distinguirdes da sexualidade e da espiritualidade e não as considerardes de uma natureza além e acima de vós, então vos entregareis a elas como qualidades do pleroma. A espiritualidade e a sexualidade não são qualidades vossas, nem coisas que possuís e contendes, mas que vos possuem e contêm; pois são demônios poderosos, manifestações dos deuses e, por conseguinte, coisas que vos ultrapassam, existentes em si mesmas. Nenhum homem tem espiritualidade ou sexualidade próprias. Mas coloca-se sob a lei da espiritualidade e da sexualidade.
Nenhum homem, pois escapa desses demônios. Deveis considerá-los como demônios que têm uma tarefa e um risco comuns, carga comum que a vida vos legou. Assim a vida, para vós, também é tarefa e riscos comuns, como são os deuses, e, acima de tudo, o terrível Abraxas.
O homem é fraco, portanto a comunhão é indispensável. Se vossa comunhão não estiver sob o signo da Mãe, então está sob o signo de Phallos. Nenhuma comunhão é sofrimento e doença. A comunhão em tudo é desmembramento e dissolução.
A individualidade leva ao isolamento. O isolamento se opõe à comunhão. Mas por causa da fraqueza do homem contra os deuses e os demõnios e sua lei invencível, a comunhão é necessária. Portanto deve haver tanta comunhão quanto for preciso, não por causa do homem, mas por causa dos deuses. Os deuses vos forçam à comunhão. Quanto mais vos forçarem, maior será a necessidade de comunhão, maior o mal.
Na comunhão, que cada homem se submeta aos demais, para que seja mantida; pois precisais dela.
No isolamento, um homem será superior aos demais, para que todos possam vir a ele e evitar a escravidão.
Na comunhão haverá continência.
No isolamento, prodigalidade.
Comunhão é profundeza.
Isolamento é elevação.
A medida certa na comunhão purifica e preserva.
No isolamento, purifica e aumenta.
A comunhão nos dá calor, o isolamento luz.

terça-feira, 13 de março de 2012

(DOIS DIABOS, O ARDENTE E O CRESCENTE) 4º SERMÃO AOS MORTOS

Os mortos encheram de murmúros o recinto e disseram:
Fala-nos dos deuses e dos diabos, maldito!

O Deus-Sol é o bem supremo; o Diabo, o oposto. Assim, tendes dois deuses. Mas há dois deuses-diabos; um, o ARDENTE, o outro, o CRESCENTE.
O ardente é EROS, que tem forma de chama. A chama dá luz porque se consome.
O crescente é a ÁRVORE DA VIDA. Germina e ao crescer se acumula de coisas vivas.
Eros se inflama e morre. Mas a árvore da vida cresce lenta e constantemente, por tempo incomensurável.
O Bem e Mal estão unidos na chama.
O Bem e o Mal estão unidos no crescimento da árvore. Em suas divindades, a vida e o amor se opõem.
Inumerável como a hoste de estrelas é o número de deuses e diabos.
Cada estrela é um deus e cada espaço que ocupa, um diabo. Mas a plenitude-vácuo do todo é o pleroma.
A manifestação do todo é Abraxas, a quem só o inefetivo se opõe.
Quatro é o número das medidas do mundo.
O primeiro é o começo, o Deus-Sol.
O segundo, Eros, une os extremos e se expande em luz.
O terceiro, a Árvore da Vida, ocupa o espaço com formas corpóreas.
O quarto é o Diabo, que abre tudo o que se encontra fechado; desfaz tudo o que se constitui de natureza corpórea; é o destruidor em que tudo é reduzido a nada.
Para mim, a quem foi dado o conhecimento da multiplicidade e diversidade dos deuses, está bem. Mas ai de vós, que substituís esses múltiplos incompatíveis por um deus único. Pois, assim fazendo, gerais o tormento que se origina na falta de compreensão e mutilais a criatura cuja natureza se vos esforçais para transformar o múltiplo em uno? O que fizerdes com os deuses será feito convosco. Ficais todos iguais e assim frustrais vossa natureza.
A igualdade prevalecerá, não para Deus, mas apenas em benefício do homem. Pois muitos são os deuses, ao passo que poucos os homens. Os deuses são poderosos e podem arcar com a sua multiplicidade. Pois, como as estrelas, permanecem solitárias, separados por distâncias imensas. Mas os homens são fracos e não podem arcar com sua natureza múltipla. Por isso moram juntos e precisam de comunhão para poder suportar o isolamento. Por amor a redenção, ensino-vos a verdade rejeitada, por cujo amor sofri rejeição.
A multiplicidade dos deuses corresponde à multiplicidade do homem.
Inúmeros deuses guardam a condição humana. Inúmeros foram homens. O homem partilha da natureza dos deuses. Vem dos deuses e vai para deus.
Assim como de nada serve refletir sobre o pleroma, não adianta venerar a multiplicidade dos deuses. E menos ainda venerar o primeiro deus, a abundância efetiva e o summum bonum. Nada podemos acrescentar-lhe com nossa oração, e dele nada podemos tirar; porque o vácuo efetivo tudo absorve.
Os deuses brilhantes formam o mundo celeste, que é múltiplo, e infinitivamente disperso e crescente. O Deus-Sol é o senhor supremo deste mundo.
Os deuses escuros formam o mundo terrestre. São simples, e infinitivamente decrescentes e minguantes. O Diabo é o mais abjeto senhor desse mundo, o espírito-lunar, satélite terrestre, menor, mais frio e mais morto que a terra.
Não há diferença entre o poder dos deuses celestes e o dos terrestres. Os celestes aumentam, os terrestres diminuem. Incomensurável é o movimento de ambos.

(BEM E O MAL) 3º SERMÃO AOS MORTOS

Como a neblina que se ergue de um pântano, os mortos avançaram clamando: Explica melhor esse deus supremo.

É difícil definir a divindade de Abraxas. Seu poder é o maior porque o homem não o percebe. Do Sol, retira o summum bonum;do Diabo, o infimum malum;mas, de Abraxas, a VIDA, totalmente indefinida, a mãe do Bem e do Mal.
A vida parece ser menor e mais frágil que o summum bonum; por isso é também difícil conceber que Abraxas transcenda em poder até o Sol, que é a fonte radiosa de toda a força da vida.
Abraxas é o Sol e ao mesmo tempo a garganta eternamente voraz do vácuo, o Diabo menosprezador e mutilante.
O poder de Abraxas é duplo; mas não o vedes, porque para vossos olhos os antônimos incompatíveis se anulam.
O que o Deus-Sol fala é vida.
O que o Diabo fala é morte.
Mas Abraxas fala aquela palavra sagrada e maldita que é vida e morte ao mesmo tempo.
Abraxas gera a verdade e a mentira, o Bem e o Mal, a luz e as trevas, na mesma palavra e no mesmo ato. Por isso é Abraxas terrível.
É magnifíco como o leão no momento em que ataca a vítima. Bonito como um dia de primavera. É o próprio grande Pã e também o pequeno. É Príapo.
É o monstro das profundezas, pólipo de mil tentáculos, nó emaranhado de serpentes aladas, frenesi.
É o hermafrodita dos tempos imemoriais.
É o senhor dos sapos e rãs, que vivem na água e sobem à terra, cujo soro se eleva à tarde e à meia-noite.
É a abundância que busca a união com o vácuo.
É a sagrada procriação.
É o amor e o assassino do amor.
É o santo e seu traidor.
É a mais brilhante luz do dia e a mais negra noite de loucura.
Contemplá-los é cegueira.
Conhecê-lo, doença.
Venerá-lo, morte.
Temê-lo, sabedoria.
Não resistir a ele, redenção.
Deus mora atrás do Sol, o Diabo atrás da noite. O que Deus traz à luz, o Diabo lança às trevas. Mas Abraxas é o mundo, seu provir e seu passar. Sobre cada presente que vem do Deus-Sol, o Diabo roga sua praga.
Tudo o que implorardes ao Deus-Sol provoca uma ação do Diabo.
Tudo o que criardes com o Deus-Sol, dá poder efetivo ao Diabo.
Esse é o terrível Abraxas.
É a criatura mais potente, e nele a criatura tem medo de si mesma.
É a oposição manifesta da criatura ao pleroma e seu nada.
É o horror que o filho sente da mãe.
É o amor da mãe pelo filho.
É a alegria da Terra e a crueldade dos céus.
Diante de seu semblante o homem fica que nem pedra.
Diante dele não há perguntas nem respostas.
É a vida da criatura.
É a manifestação da individualidade.
É o amor do homem.
É a linguagem do homem.
É a aparição e a sombra do homem.
É a realidade ilusória.

Então os mortos, por estarem consumados, gemeram e esbravejaram.

(DEUS E O DIABO) 2º SERMÃO AOS MORTOS

No meio da noite os mortos, parados em pé contra a parede, bradaram:

Queremos ver Deus. Onde está? Morreu?

Deus não morreu. Agora, como sempre, vive. Deus é criatura, coisa definida e, portanto, distinta do pleroma. Deus é qualidade do pleroma e tudo o que eu disse da criatura também se aplica a ele.

Distingue-se, porém, dos seres criados no sentido de que é mais indefinido e indeterminável do que eles. É menos diferenciável que os seres criados, pois a base de sua existência é a plenitude efetiva. Só na medida em que for definido e distinto é criatura e na mesma proporção é manifestação da plenitude do pleroma.

Tudo o que não distinguimos mergulha no pleroma e se anula pela antinomia. Se, portanto, não distinguimos Deus, a plenitude efetiva se extingue para nós.

Além disso, Deus é o próprio pleroma, da mesma maneira que cada ponto ínfimo no criado e no incriado é o próprio pleroma.

O vácuo efetivo é a natureza do Diabo. Deus e o Diabo são as primeiras manifestações do nada, que chamamos de pleroma. É indiferente que o pleroma exista ou não, uma vez que em tudo é contrabalançado e nulo. A criatura já não é assim. Na medida em que Deus e o Diabo são criaturas, não se anulam e sim erguem-se um contra o outro, como antônimos efetivos. Não precisamos de provas de sua existência. Basta que sempre se esteja falando neles. Ainda que ambos não existissem, a criatura, por causa de sua individualidade essencial, sempre os distinguiria de novo no pleroma.

Tudo o que a discriminação distingue no pleroma é antinomia. Deus, portanto, sempre corresponde ao Diabo.

Essa inseparabilidade é tão íntima e, como a vossa própria vida vos fez ver, tão indissolúvel quanto o próprio pleroma. Assim é que os dois se mantêm muito próximos do pleroma, no qual todos os antônimos se anulam e se fundem.

Deus e o Diabo se distinguem pelas qualidades de plenitude e vácuo, criação e destruição. A EFETIVIDADE é comum a ambos. A efetividade os une. Paira, portanto, sobre ambos, é um deus acima de Deus, já que em seu efeito reúne a plenitude e o vácuo.

Esse é um deus que não conheceis, pois a humanidade o esqueceu. Nós o chamamos pelo seu nome, ABRAXAS. É ainda mais indefinível que Deus e o Diabo.

O deus que se pode distinguir, nós o chamamos de deus HELIOS, ou Sol. Abraxas é efeito. Nada se antepõe a ele que não seja inefetivo, daí que a sua natureza efetiva se desdobre livremente. O inefetivo não existe, portanto não resiste. Abraxas paira acima do Sol e acima do Diabo. É a probabilidade improvável, a realidade irreal. Tivesse o pleroma um ser, Abraxas seria a sua manifestação. É o próprio efetivo, não algum efeito especial, mas o efeito em geral.

É a realidade irreal porque não tem efeito definido.

É também criatura, por ser diferente do pleroma.

O Sol tem um efeito definido e o mesmo acontece com o Diabo. Por isso nos parecem mais efetivos que o indefinido Abraxas.

É força, duração, mudança.

Os mortos então provocaram grande tumulto, pois eram cristãos.

domingo, 11 de março de 2012

(NADA, PLENITUDE, VÁCUO) 1º SERMÃO AOS MORTOS

Os mortos voltaram de Jerusalém, onde não encontraram o que procuravam. Pediram-me guarida e imploraram que lhes falasse. Assim comecei a ensinar.

Prestai atenção: começo pelo nada. O nada equivale à plenitude. No infinito, o pleno não é melhor que o vácuo. O nada é, ao mesmo tempo, vácuo e plenitude. Dele se pode dizer tudo o que se quiser; por exemplo: que é branco, ou preto, ou então que existe, ou não. Uma coisa infinita e eterna não possui qualidades, pois tem todas as qualidades.

A esse nada ou plenitude dá-se o nome de PLEROMA. Nesse particular cessam o pensar e o ser, já que o eterno e infinto não possui qualidades. Nele nenhum ser é, porque senão se diferenciaria do pleroma e possuiria qualidades que o distinguiriam como algo inconfundível.

No pleroma não existe nada e tudo existe. É absolutamente inútil pensar no pleroma, pois redundaria em autodissolução.

A CRIATURA não está no pleroma, mas em si mesma. O pleroma é, simultaneamente, o começo e o fim dos seres criados. Impregna-os, como a luz impregna o ar em todo lugar. Apesar de impregnado por completo, nenhum ser criado retém parte do pleroma, assim como o corpo inteiramente translúcido não se torna claro nem escuro com a luz que o impregna. Somos, porém, o próprio pleroma, pois integramos o eterno infinito. Mas não retemos nenhuma parte sua, por estarmos infinitamente afastados, não em forma espiritual ou temporal, e sim essencial, pois nos diferenciamos dele por nossa essência de criatura, confinada no tempo e no espaço.

No entanto, por dele fazermos parte, o pleroma também está em nós. Até mesmo no seu grau mais ínfimo não tem fim, é eterno, e inteiro, pois pequeno e grande são qualidades nele contidas. É aquele nada que se acha completo e contínuo em todo lugar. Só no sentido figurado, portanto, me refiro ao ser criado como parte do pleroma. Porque, na realidade, o pleroma não se divide em nenhum lugar, uma vez que equivale ao nada. Também somos o pleroma inteiro, porque, no sentido figurado, o pleroma é o menor ponto (apenas suposto, não existente) em nós e no firmamento ilimitado que os rodeia. Mas por que, falamos afinal no peroma, já que é assim, tudo ou nada?

Falo nele para partir de algum começo e também para tirar-vos a ilusão de que em algum lugar, seja fora ou dentro, existe algo determinado, ou de qualquer forma estabelecido, desde o início. Toda coisa que se diz determinada e certa é apenas relativa. Só é determinado e certo o que for possível de ser modificado.

O que é modificável, porém, é a criatura. Por conseguinte, é a única coisa que está determinada e certa; porque tem qualidades: inclusive é a própria qualidade.

Impõe-se a pergunta: como se originou a criatura? Os seres criados perecem, a criatura não; pois o ser criado é a própria qualidade do pleroma, tanto quanto a não-criação, que equivale à morte eterna. Em todos os tempos e lugares existe a criação, em todos os tempos e lugares existe a morte. O pleroma tudo possui, individualmente e não-individualmente.

A individualidade equivale à criatura. É única. Constitui a essência da criatura e, portanto, a diferencia. Por conseguinte, o homem discrimina porque a individualidade faz parte de sua natureza. Daí também por que se distinguem no pleroma qualidades que não existem. Distinguem-nas por causa de sua própria natureza. Há pois que falar de qualidades do pleroma que não existem.

Qual a utilidade, direis, de falar nisso? Não foste tu mesmo que disseste que não adianta pensar no pleroma?

Isso eu vos disse, para tirar-vos a ilusão de que podemos pensar nele. Quando distinguimos qualidades no pleroma, falamos tomando por base a nossa própria individualidade e a respeito dessa mesma individualidade. Mas nada dissemos a respeito do pleroma. A respeito de nossa própria individualidade, porém, é preciso falar, para podermos distinguir suficientemente a nós mesmos. A nossa própria natureza é individualidade. Se não formos fiéis a essa natureza, não nos distinguiremos suficientemente bem. Temos, portanto, que fazer distinções de qualidades.

Qual o prejuízo, perguntareis, em não se distinguir a si mesmo? Se não nos distinguirmos, ultrapassando a nossa própria natureza, nos afastamos da criatura. Caímos na falta de individualidade, que é a outra qualidade do pleroma. Caímos no próprio pleroma e deixamos de ser criaturas. Nos entregamos à dissolução no nada. O que resulta na morte da criatura. Morremos, portanto, na medida em que não nos disinguimos. Daí o empenho natural da criatura para adquirir individualidade, para lutar contra a igualdade inicial, perigosa. A isso dá-se o nome de PRINCIPIUM INDIVIDUATIONIS. Esse princípio é a essência da criatura. Com isso podeis ver por que a falta de indivualidade e a não-distinção constituem grande risco para a criatura.

Devemos, pois, distinguir as qualidades do pleroma. Essas qualidades são ANTÔNIMAS, como, por exemplo:
O Efetivo e o Inefetivo.
Plenitude e Vácuo.
Vivos e Mortos.
Diferença e Igualdade.
Luz e Trevas.
O Quente e o Frio.
Força e Matéria.
Tempo e Espaço.
O Bem e o Mal.
Beleza e Fealdade.
O Uno e o Múltiplo etc.

As antônimas são qualidades do pleroma que não existem, pois uma contrabalança a outra. Como constituímos o próprio pleroma, também possuímos todas essas qualidades em nós. Por ser a própria base de nossa natureza a individualidade, possuímos, portanto, essas qualidades em nome e sinal da individualidade, o que quer dizer que:

1. Essas qualidades são distintas e separadas uma das outras em nós; por conseguinte, não são contrabalançadas e nulas, e sim efetivas. Somos assim vítimas dessa antinomia. O pleroma está dividido em nós.

2. As qualidades pertencem ao pleroma e só em nome e sinal da individualidade podemos e devemos possuí-las ou vivê-las. Temos que nos disinguir das qualidades. No pleroma estão contrabalançadas e nulas; em nós não. Sermos distintos delas liberta-nos.

Quando nos empenhamos no bem ou no belo, esquecemos consequentemente a nossa própria natureza, que é a individualidade, e nos entregamos às qualidades do pleroma, que são antônimas. Lutamos para conseguir o bem e o belo, mas ao mesmo tempo também ficamos com o mal e o feio, que no pleroma são inseparáveis do bem e do mal. Quando, porém, permanecemos fiéis à nossa própria natureza, que é a individualidade, nos distinguimos do bem e do belo e, portanto, ao mesmo tempo, do mal e do feio. E assim não mergulhamos no pleroma, ou seja, no nada e na dissolução.

Tu dizes, contraporeis, que a diferença e a igualdade também são qualidades do pleroma. Como seria, então, se nos empenhássemos na diferença? Agindo assim, não estamos sendo fiéis à nossa natureza? E, apesar disso, não devemos nos entregar à igualdade quando nos empenhamos na diferença?

Não deveis esquecer que o pleroma carece de qualidades.Somos nós que as criamos pelo raciocínio. Se, porém, vos empenhardes na diferença ou na igualdade, ou em qualquer outra espécie de qualidade, estareis imersos em raciocínios inspirados pelo pleroma; ou seja: raciocínios a respeito de qualidades inexistentes do pleroma. Na proporção em que vos lançardes a esses raciocínios, tornareis a cair no pleroma, atingindo ao mesmo tempo a diferença e a igualdade. Não é vosso raciocínio e sim o vosso ser que constitui a individualidade. Por conseguinte, ao contrário do que supondes, não é a diferença que deveis vos empenhar, mas no VOSSO PRÓPRIO SER. No fundo, pois, existe apenas um empenho, ou seja, o empenho no vosso próprio ser. Se tiverdes esse empenho, não precisareis saber nada a respeito do pleroma e suas qualidades e ainda assim atingireis a meta almejada em virtude de vosso próprio ser. Como,porém, o raciocínio se aparta do ser, devo ensinarvos esse conhecimento, por meio do qual podereis refrear vossos ensamentos.